Viagens
Viagens

Memórias do Grama dos anos cinquenta (VII)

Viagens

Francisco de Assis Braga

Viagens a pé

 

Hoje, com a presença constante do carro em nossas vi-das, as viagens a pé ou a cavalo foram relegadas ao es-quecimento, sendo atividade de poucos.

 

Não era assim nos anos cinquenta. Só os muito ricos pos-suíam carros. Havia, por certo, o transporte público - ôni-bus e trens, dos quais falaremos oportunamente -, mas as pessoas se deslocavam pouco (salvo aqueles que, ainda naquele tempo, deram início à debandada de gramenses para São Paulo), e, quando se distanciavam de sua cidade, faziam-no, na maioria das vezes, a pé ou a cavalo.

 

As viagens a pé sempre foram louvadas como benfazejas. Lembremo-nos, por exemplo, de Rousseau e sua célebre obra

As divagações de um caminhante solitário (Les rêve-ries d´um promeneur solitaire).

 Li trechos desse livro ainda quando estudante no colégio

 D. Helvécio, em Ponte Nova, e dele nunca mais me esqueci.

 

As viagens a pé, além de exercitarem nosso corpo, permi-tem-nos transitar por paisagens físicas e humanas, co-nhecer lugares novos e pessoas nunca vistas. Passar por um mineiro numa estrada, por exemplo, depois do meio dia, e ouvir um sonoro cumprimento - "

. . .taaarde !

A primeira viagem a pé que fiz deve ter ocorrido quando eu tinha meus 6 ou 7 anos, ali por 1952 ou 1953. Fui com meu pai visitar o sítio, um pouco além do Bonfim.

 

Para mim foi uma aventura. Fomos pela Rua de Cima, passamos pela casa de Feliciano, de Antônio Braz e, por fim, de Augusto de Lô, pai dedicado de muitos filhos, mú-sico, plantador de cebola e ventríloquo (talvez o único que o Grama já teve). Esta última qualidade do Augusto encantava Zizinho Brandão, quando a via exercitada em sua loja, com as pessoas procurando de onde vinham as vozes que ouviam.

 

Augusto morava na então chamada vargem do Leovegil-do, o Lô, meu tio. Tratava-se de ampla gleba, onde havia e deve haver ainda hoje até mina d´água. Ali se plantava milho, tomate e cebola.

 

Finda a Rua de Cima, caminhamos, eu e meu pai, pela es-trada poeirenta que, passando pela vargem do Lô, saía na ponte de pedra, lugar que faz jus ao nome, pelas enormes pedras existentes e por onde passa o ribeirão. Ali, no pe-ríodo da seca, tomei muitos banhos de ribeirão, com cui-dado para não me afundar entre as pedras, conforme 

 

mais tarde ocorreu com Mussolini, filho do Jácomo Russo, se bem que não no mesmo local, mas, sim, na cachoeira existente nos confins da Rua de Baixo. No verão, a ponte de pedra trazia bonito espetáculo, pois as águas do ribei-rão se avolumavam e enfrentavam, de forma telúrica, as pedras que, no inverno, quase ocultavam as poucas águas que por ali passavam. Muitas vezes, eu, ainda garoto, ou-via, aturdido, que as águas estavam passando por cima da ponte de pedra, que eu julgava elevada, muito embora fosse simples ponte de madeira, e tão precária que os caminhões que se destinavam ao Bonfim não passavam por ali, mas se desviavam dela, indo por outro caminho, via Rua da Palhada.

 

Em nossa caminhada, vimos, após a ponte de pedra, a fa-zenda de Teófilo do Couto. Era um casarão de estilo tradi-cional das fazendas brasileiras, se bem que de tamanho médio. No Grama da época, havia fazendas maiores do que aquela, uma delas de propriedade do pai do Júlio e Joélcio, a qual, certa feita, visitei, tendo me impressiona-do muito a quantidade de portas e janelas (ainda existe tal fazenda ? se sim, deveria ser preservada como parte do patrimônio histórico do Grama).

 

Teófilo do Couto era homem sério, que teve prolífica fa-mília. Hoje, fico imaginando como ele conseguiu criar e educar família tão grande apenas com a renda da pecuá-ria e da agricultura de sua fazenda, que era média, não grande.

 

Eu via seus filhos (Ildeu, Itamar, Iramar, etc.) passando a pé pela Rua de Cima, defronte de nossa casa, em direção ao centro do Grama. Vejo as imagens como se fossem de hoje. E, anos depois, quanto Teófilo e família não mora-vam mais ali, vi, com tristeza, a fazenda cair em decadên-cia, com a casa principal se desfigurando e perdendo a primitiva beleza. Sei que os filhos de Teófilo progrediram e tiveram, ou ainda têm, papel de destaque, notadamen-te em Rio Casca, para onde alguns deles se foram. Imagi-no que seja fruto da educação que receberam, pois tive-ram pai austero e trabalhador. No Grama, a única ativi-dade de um dos filhos (não me lembro mais qual deles) foi uma venda que existiu onde foi o antigo bar do Zé Russo, e que era administrada pelo famoso Zé Timbé, grande jogador de futebol, sujeito muito educado e bem humorado, amigo de Waldomiro Paixão.

 

Prosseguindo em nossa viagem, eu e meu pai atingimos o Bonfim, propriedade de Glicério, com sua grande baixada que se tornava verdejante como um campo de soja para-naense, na época da cebola.

Virando à direita, chegamos à área do sítio.

 

Nosso sítio era, como ainda é, região montanhosa, com pouco espaço para a agricultura, sua atividade principal se centrando na pecuária.

 

Mas é lugar bonito, com paisagens típicas de nossa Minas Gerais. Tinha, como ainda deve ter, remanescentes de

mata nativa (seriam relíquias da antiga mata Atlântica ?), na qual ainda se caçava, nos anos cinquenta. Do lado es-querdo do sítio, em terras de Glicério, via-se enorme pe-dra, na qual me arrisquei a subir uma única vez (a subida era arriscada), pois o que se via de cima, em dia claro, era algo de deslumbrante.

 

Chegando ao sítio, porém, o que mais me chamou a aten-ção foi um velho moinho, provavelmente construído no início do século, movido à água. Pequeno tubo d´água descia e fazia girar pá rotatória, que movia o eixo e este fazia girar a pedra do moinho, ou mó (segundo as pala-vras cruzadas). O movimento era lento e penso que devia levar todo um dia para transformar meio saco ou um saco de milho em fubá. As formigas eram detidas através de água que circulava num rego de concreto em volta da ca-sa do moinho, impedindo-as de passar. Se passassem, era impressionante com que organização elas carregavam o milho (cujo grão, em termos relativos, deveria pesar qua-se tanto quanto uma delas) para seu esconderijo.

 

Na parte de baixo do moinho, havia pequeno brejo e, ali, as águas faziam maravilhoso remanso, onde até peixe ha-via. Era comum ver por lá restos de melancias apanhadas e chupadas por pescadores eventuais.

 

Em certo momento da viagem, descobrimos que não tí-nhamos levado nenhum alimento e a fome me acicatou, mas meu pai me disse: - "Calma, já iremos voltar; enquanto isso, tome água". Como se água matasse a fome ! Mais tarde, em 1957, quando, pela primeira vez fui ao Co-légio Dom Helvécio para o exame de admissão ao ginásio, voltei a me lembrar do episódio, pois novamente meu pai voltou a me falar da água, dessa feita para me ensinar como me utilizar dos bebedouros espalhados pela área do estabelecimento, utilizando-me das mãos postas em concha.

 

Recentemente, fiquei muito triste quando soube que o moinho visitado não existe mais. Era relíquia a ser preser-vada !

Finda a permanência no sítio, voltamos à cidade, e aquela foi minha primeira viagem fora dos limites da Rua de Ci-ma e do Grupo Escolar.

 

Outra pequena viagem a pé que fiz nos anos cinquenta foi visita que, juntamente com Nenê Cebola, meu irmão, e Arthur Bayão, fizemos à fazenda de João Nicolau. Não te-nho na lembrança o motivo da visita, e apenas gravei que, no almoço, serviram-nos delicioso prato de lombo e tutu. Fomos muito bem tratados e João Nicolau, que era tido como bravo, desmentiu a fama e nos tratou como um

gentleman, legítimo cavalheiro. Muitos anos depois, já nos anos sessenta, lembrei-me da tal visita quando me defrontei com ele, próximo ao correio de Chichica e Os-car, e ouvi, não sem certo estremecimento, que ele era adepto ferrenho de Carlos Lacerda, para mim, na época, o 

demônio travestido de político. Hoje, não penso mais as-sim – o tempo se encarrega de dissolver os devaneios da juventude.

 

Mas outras pessoas faziam, na época, grandes viagens a pé. Não me esquecerei jamais dos alunos do Grupo Esco-lar que, morando na área rural, caminhavam três ou qua-tro quilômetros, todos os dias úteis, para assistir aula no Grama. Muitos vinham descalços, pois nem sapatos ti-nham, e eram exemplo para mim, que, embora não sen-do filho de família rica, morava na cidade e não me de-frontava com tantas dificuldades.

Ia-se a pé também ao Grota, local que, na minha imagina-ção de criança, ficava tão longe que ali acabava o mundo. Muitos anos mais tarde, fiz questão de ver mapa detalha-do do Estado de Minas Gerais para localizar o Grota e fi-car convicto de que não se tratava do fim do mundo. Por isso, até hoje me sinto em débito com o Grota, cidade que ainda pretendo conhecer.

Como o Grota não tinha padre, às vezes o pároco do Grama celebrava lá e costumava levar o coro (era esta a palavra) da Igreja para cantar naquelas plagas. E, embora bastante jovem, lembro-me de que, em certa ocasião, as cantoras do Grama, dentre as quais, Fiinha, de Alípio Fafá, Ione, de Alfredo e Leleta, minha irmã, foram a pé ao Gro-ta. Uma delas levava na mão uma maçã, que jogada e

apanhada parecia desviar a atenção e fazer com que a longa caminhada não fosse sentida como tão ingente.

 

Outras viagens a pé faziam as pessoas da zona rural aos domingos, quando vinham à cidade para assistir à missa. Muitas vinham descalças, pois era assim que viviam, até a entrada da Rua de Cima, e, ali, calçavam um sapato que suportavam estoicamente até a hora de irem embora e dele se livrarem. Alguns homens curiosamente vinham armados, mas tinham o cuidado de deixar a garrucha guardada na venda de meu pai, de modo a não provoca-rem o delegado de plantão (inexistia polícia, na época).

 

Uma das pessoas que vinha ao Grama para a missa era Zé de Deus. Tratava-se de homem austero, com a honesti-dade estampada no semblante, e que fazia jus ao nome: era, realmente, "de Deus". Hospedava-se na casa de mi-nha vó Conceição, e eu sempre o via como homem sério e de muita fé, de estofo diferente do comum dos mortais.

Viagens a cavalo

Mas o mais comum, nos anos cinquenta, eram as viagens a cavalo, ou em lombo de burro (talvez mais resistente) ou de mulas.

 

Em outro capítulo destas memórias, referi-me aos tropei-ros, que, saindo do Grama, atingiam cidades como Guaçuí e Itapemirim, no Espírito Santo, e tudo em lombo de ca-valo ou burro. 

O cavalo era muito utilizado pelos habitantes da zona ru-ral, tanto para se locomoverem por lá como para irem à cidade fazer compras.

Padre Antônio – segundo me disseram, pois o fato ocorria em época anterior a mim – também fazia uso de cavalo, de nome

Lasquiné, para ir ao Grota. Pregar o Evangelho aos grotenses exigia tal sacrifício, que ele, homem forte e corajoso, enfrentava com alegria e prazer. Mais tarde, o Pe. Russo também ia ao Grota, só que de Jeep.

 

Meu pai tinha cavalo da raça

campolina, todo malhado, e, em determinado dia, tive a incumbência de pegá-lo no pasto, no final da época de chuvas, estando ele gordo e ocioso há muito tempo. Encabrestei-o e o montei em pe-lo, conforme se dizia, ou seja, sem arreios. Cutuquei-o pa-ra descermos o pasto que hoje é de Zé Braguinha e ele saiu em desabalada carreira. Não resistindo, tomei enor-me tombo e nunca mais quis cavalgar em pelo, sem ré-deas ou arreio no qual segurar.

Peço licença ao leitor para contar pequena viagem (que, para mim, foi demasiado longa) feita nos anos cinquenta, e em lombo de cavalo.

 

Meu falecido irmão João tinha saído do Grama em 1945, ano de meu nascimento, para estudar em seminário sale-siano de São João-del-Rey e só voltou, para visita à famí-lia, cerca de quinze anos depois, portanto na metade da década dos cinquenta. Durante sua estadia, participei de

viagem a cavalo que eu, ele e o Zé Maria Braga (conheci-do como Zé Pingolô), dos que me lembro, fizemos pros lados do Jacaré.

 

Saímos do Grama e nossa primeira parada foi na fazenda de Dona Maria Rosa, de quem João gostava muito. Re-memoro o fato como se fosse hoje. A fazenda era muito bonita e Dona Maria Rosa, pessoa encantadora, muito alegre e dando aos visitantes tratamento refinado. Era mãe do famoso Zé de Lima, a quem voltarei na sequência destes textos, e tinha mais de uma filha, que estavam to-das lá, mas de cujo nome não me lembro mais.

Saindo da fazenda de Dona Maria Rosa, fomos em direção de outra, onde morava – se não estou redondamente en-ganado – Ilidinho e sua esposa, Zitinha, filha de Minzinho. Também fomos recebidos com a tradicional cordialidade mineira, e me chamou a atenção que a dona da casa es-tava com o rádio ligado (luz de gerador) e ouvindo a Rá-dio Nacional, mais precisamente a crônica lida por Cesar Ladeira e intitulada de

O drama de cada um. Vendo aqui-lo, eu disse de mim para comigo que o progresso e a civi-lização estavam chegando também às fazendas (se é que ouvir a Rádio Nacional era sinônimo de progresso; mas, na época, era, sim senhor !).

 

Prosseguindo em nosso périplo, atingimos a ponte do Ja-caré, e fiquei muito impressionado pois o rio que via era muito maior do que nosso prosaico ribeirão e suas águas,

naquele ponto, se atiravam, em revolta hídrica, contra as pedras existentes.

Atravessamos a ponte e fomos à casa de Mundinho Rafa-el, então muito jovem. Novamente, fomos bem recebi-dos, e, como o final do dia já se aproximava, começamos o longo caminho de volta. Esqueci-me, contudo, ao iniciar a viagem, de que era mês de janeiro, época na qual o sol mineiro fustiga inclemente, e, como eu usava simples cal-ça curta, queimei-me todo nas coxas, com sofrimento que levou semanas para passar.

 

E havia viagens a cavalo também de outras cidades para o Grama, algo que me parecia formidável, por causa da dis-tância, que eu julgava grande demais para um simples animal. Ricardo, por exemplo, marido de minha tia Alcina, e que morava na região rural de Abre Campo, vinha a ca-valo visitar minha vó Conceição, sua sogra. Quando che-gava, vinha tão esfalfado que minha vó punha água quen-te numa bacia, onde ele, descansando os pés, contava pa-ra ela as novidades da grande família que tinha.

 

Grandes andadores a cavalo, na época, e dos quais me lembro, eram: Zé de Lima, que tinha burro de nome "Sor-vete", em cima do qual ficava quase o dia todo, pois era administrador das propriedades de Glicério; outros anda-dores eram Antônio Marciano, os Bitarães e o Zé Gregó-rio, que, quando ia ao Grama, trazia delicioso queijo branco para a venda de meu pai.

Viagem de bicicleta

 

Mas não posso deixar de mencionar que, na época, havia também uso intensivo da bicicleta. O Zé Pin-golô, por exemplo, costumava nos visitar e ia de bi-cicleta. Algumas possuíam até farol, de modo a se-rem usadas à noite.

E, em determinada ocasião, um dos filhos do Dutra, irmão de Adelaide, se não me engano de nome Luís, que viera de Belo Horizonte e estava de férias no Grama, decidiu que iríamos de bicicleta a Abre Campo, visitar tio dele que tinha loja bem na praça central da cidade. Não me esqueci de tal viagem, dentre outros motivos porque o tio dele tinha filhas muito bonitas.

 

Convidamos o Vitalino, de Maé, para nos fazer companhia e lá fomos nós. A ida até que foi tranqui-la, passamos pelo Taquaral, onde morava o Pedro Chaves, e fomos em frente. Na volta, porém, surgiu, pelo menos para mim, sério problema. A estrada não era asfaltada, como hoje, e num certo ponto ela tinha muita poeira ou, então, alguma coisa mui-to espessa que poderíamos chamar de areão. E a bicicleta não andava. Esforcei-me tanto que senti câimbras, de modo que, até o ponto em que a es- 

trada começa a descer para o Grama, vim empur-rando a bicicleta. Mas Vitalino, muito resistente e sempre alegre e bem humorado, enfrentou o tre-cho todo no pedal !

 

Em tal viagem, percebi que Abre Campo era cidade mais desenvolvida do que o Grama, e, na estrada, passou por nós o ônibus tipo jardineira, da Pássaro Verde, que tinha como destino Belo Horizonte, mas que não passava pelo Grama, dada a precariedade de nossas estradas.

Próximo capítulo:

 

As viagens de carro, ônibus ou trem: Ponte Nova, Rio Casca e Belo Horizonte

Translate this Page
ONLINE
4




Partilhe esta Página



 

 


Velocidade Internet