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O Grama e os Tropeiros
O Grama e os Tropeiros

 

As comunicações, o comércio e as trocas nem sempre evoluíram com rapidez. Durante séculos, parecia que tu-do permanecia exatamente como estava. Nos tempos modernos, porém, notadamente a partir do século XVIII, a evolução se acelerou, e, em nossos dias, ficamos mes-mo aturdidos em ver como rapidez e a obsolescência ocorrem.

Lembremo-nos, por exemplo, de que, em 1789, a notícia da queda da Bastilha levou quinze dias para chegar a Ma-drid, capital de país limítrofe com a França.

Hoje, porém, vivemos época na qual a aceleração parece ter atingido, principalmente na área da informática e dos meios de transporte, velocidade inédita. Estamos na era dos trens de alta velocidade, de aviões supersônicos e de e-mail enviado de São Paulo chegar a Tóquio, no outro lado do mundo, em questão de segundos.

De modo que falar de tropas e de tropeiros parece ana-cronismo, perda de tempo. Mas estamos rememorando e é impossível negar que eles existiam nos anos cinquenta e

que tiveram importância econômica e social para a vida do Grama.

Na época, havia tropeiros que vinham e tropeiros que iam. Falemos de ambos.

Tropeiros que vinham

Os tropeiros que vinham eram os célebres paneleiros. Aqui chegavam de Mariana, com sua tropa de mulas e burros.

Traziam panelas de pedra sabão e também alimentos, como goiabada caseira. Daqueles de quem nos lembra-mos, um se chamava Chrispim, o outro, Zé da Panelas. Um deles tinha enorme dente de ouro, símbolo de status, na época. Ficavam arranchados em área coberta, ao lado da casa de minha Vó Conceição, onde, mais tarde, Jesus Delfino construiu a casa do pai. Isto em épocas anterio-res, ao que me lembro, pois, quando criança e adolescen-te, via-os

arranchados (este era o termo) na área entre o pé de angá – assim era chamado – que existe próximo da casa dos Braga e o estabelecimento de Antônio Marciano. Ali, havia uma espécie de pequena praça, muito utilizada para amansamento de burros bravos, e, nela, eles apor-tavam.

Vó Conceição, sempre muito generosa, dava-lhes feijão cozido, pois cozinhavam em trempes e eles, em troca, da-vam-lhe barras de goiabada. Eram pessoas boas e comu-nicativas. O Zé Paneleiro era bom papo. Vinham e volta-vam todos os anos. Até que sumiram.

Tropeiros que iam

Mas os tropeiros que iam foram mais marcantes e de maior relevo para a história do Grama. Eram dois irmãos, Antônio e Zé Marciano; o último acabou abandonando a tropa para se dedicar à profissão de pedreiro, de modo que só restou um dono de tropa, Antônio Marciano, mui-to embora, conforme veremos, Raimundo Caetano tam-bém tenha sido tropeiro.

Zé Marciano era homem alto e esguio; trabalhador infati-gável, lembro-me de vê-lo passando defronte de nossa casa para ir à obra. Na hora do almoço, passava de novo para tomar refeição em casa. Era de humor impagável, e, nas curtas noites gramenses – não havia televisão e todos dormiam cedo – valia a pena ouvi-lo, sentado na venda de meu pai, contando suas lorotas. Certa feita, ouvi-o di-zer que temia os vírus presentes nos picolés ! Obviamen-te, tratava-se de

boutade, típica de quem encarava a vida com bom humor e via graça em tudo. 

O primeiro deles se chamava Antônio Thomé Viana. Igno-ro de onde veio o apelido de "Marciano". Teriam vindo de Marte num disco voador ? É muito improvável, pois eram bem terráqueos !

Antônio Marciano foi um dos tipos inesquecíveis do lugar. Apesar de beber e fumar desbragadamente, viveu até idade avançada. Era empreendedor e aventureiro nato. Muito humano, estava sempre alegre e não guardava res-sentimentos, estando aí, talvez, a causa de sua populari-dade. Embora desprezado por alguns e, de certo modo, vivendo à margem da moralidade imperante, por ter se amancebado com mulher que, originalmente, não era sua, algo que fazia dele um desviante daquilo que poderí-amos chamar de vida de acordo com os "bons costumes" vigentes (todos sabemos que isto muda com o tempo e que o que era condenado ontem, hoje não o é mais), não reagia se isolando ou desancando os outros. Cuidava de sua vida, e só.

Tinha cachorro fiel, acompanhante de todas as horas, de nome Perrô. Perrô, quando confinado ao quintal da casa, dali não saía. E a diversão da garotada da Rua de Cima era

estumá-lo – termo que significa "irritar" – e vê-lo latir de-sesperadamente; no entanto, mesmo não amarrado, ele não saía de seus limites.

O destino da tropa de Marciano era o Espírito Santo, para onde levavam fumo. Ao ouvir-lhes as conversas, mencio-

nando cidades como Guaçuí, Itapemirim, etc., eu, garoto jovem, ficava imaginando onde ficavam tais localidades. Como a viagem era feito em lombo de burro, podemos dizer que estavam bem distantes. Mas a tropa ia até lá !

O fumo era plantado no quintal de Antônio Marciano, ao lado do nosso. Do mesmo modo como ocorria com a ce-bola, também se faziam

pindobas para secar as folhas. O fumo era fiado, ou seja, as mulheres iam passando as fo-lhas nas mãos num movimento contínuo de onde escorria um mel preto. Passava por banhos; depois, era enrolado. Após tal processamento, o fumo estava pronto para ser embarcado em direção às plagas capixabas.

Tal comércio – dizem as minhas fontes – rendeu certo di-nheiro a Marciano, que, a partir daí, começou a se inte-ressar por aquela que seria sua futura mulher, a Lia.

Marciano, porém, não foi muito feliz quando da aquisição de bela fazenda, existente ainda hoje no caminho entre o Grama e o Grota. Comprou-a de um tal Zezinho Farra – o nome é encantador, revelando que o personagem, cer-tamente, jamais flertou com a depressão – que, segundo eu ouvia na época, a teria adquirido com recursos duvi-dosos (o significado da expressão é vago, de modo que não estou condenando o "Farra", mas apenas relembran-do aquilo que o povo então dizia), de modo que daí se originou demanda judicial que, passando de tribunal a tribunal, como sói acontecer na Justiça brasileira, consu-

 

miu décadas, e não estou certo se Marciano morreu sem ter tido ou não o sabor de possuir plena e pacificamente o que adquirira. A fazenda – estive nela uma única vez – ficava em local aprazível, tendo nos fundos bela mata, re-líquia de tempos idos e que parecia preservada.

O dia da saída era de festa, todos os burros iam enfeita-dos e, na frente, seguia uma égua ou mula com guizos, ou

cincerros, para indicar o caminho aos demais. Era a ma-drinha da tropa.

Após preparos e despedidas, a tropa seguia. Mas Marcia-no permanecia no Grama. Apenas dias depois, ele saía em seu cavalo ou burro, sozinho, em busca do próximo local de acampamento da tropa.

Para mim, com cabeça de adolescente, sempre foi um mistério ver como homem que bebia tanto lograva orga-nizar sua vida – e se tratava de vida organizada, sim se-nhor ! – e conduzir tropa a outro Estado, em longa via-gem, que exigia paciência e tenacidade.

Houve outro tropeiro de que me lembro, Raimundo Cae-tano, meu padrinho, grande jogador de

truco e marido de Ciana Camila, provavelmente uma das melhores doceiras que o Grama já viu – jamais me esquecerei de sua goia-bada cascão e da geleia de mocotó, na qual ela punha certos condimentos que lhe davam sabor todo especial. Viajando a trabalho pelo Brasil afora, procurei incansa-velmente por tal geleia de mocotó, e é certo que encon-7

trei algo similar em Uberlândia, mas de qualquer modo não igual à geleia de Ciana. Ciana Camila tinha também outra peculiaridade interessante – e que me foi lembrada pela Beatriz Torres - apesar de pobre, gostava de usar joi-as. E era mulher muito religiosa, participando ativamente da Irmandade Coração de Jesus. No final da vida, tendo perdido o marido e reduzida a estado de pobreza, enfren-tou tudo com sereno estoicismo, ou resignação cristã.

Voltando à tropa, havia todo um folclore e contos de

cau-sos que ocorriam durante a viagem. Segundo minhas fon-tes, Raimundo Caetano teria relatado que, certa feita, um fiscal lhe pediu para ver o talão dos impostos da mer-cadoria. Caetano rogou que o fiscal aguardasse, buscou um talão de couro e lhe deu bela surra. Dizem-me tam-bém as fontes que, segundo contava Zé Marciano (e, aqui, não há como discernir entre a verdade e simples ba-zófia, tipo "estória de pescador"), eles teriam chegado a matar pessoas tidas como perigosas durante a viagem, batendo um prego naquele ponto vital que existe na nu-ca, enquanto o sujeito dormia. De manhã, o personagem estava morto e não eram encontrados sinais que com-provassem o assassinato. Raimundo Caetano tinha a ca-beça toda marcada de surras que teria levado por lá.

O dia da chegada da tropa também era de festa e espera-do com ansiedade.

 

Marciano tinha armazém próximo de onde fica a casa de minha família, onde estocava as mercadorias e objetos da tropa. É de admitir que havia certa perícia no preparo do fumo e da tropa – algo como um

know-how dos tropeiros - e Raimundo Caetano tecia com arte as rédeas por meio das quais se comandava o cavalo ou burro, que levava o chamado freio dentro da própria boca.

Marciano não trabalhava só. Tinha auxiliares, lembrando-me de dois deles: um, chamado de

Fruto (nunca tive cer-teza de se se tratava de nome ou de apelido), do qual fa-larei adiante; outro, de nome Ilton, e que impressionava muito o adolescente que eu era não só por ser do tipo bonachão, mas, também, porque era fervoroso adepto do futebol e grande conhecedor de música popular. Em de-terminado sábado, ouvindo o programa Cesar de Alencar, na venda de meu pai, ouvi-o se antecipar ao radialista e anunciar o nome de Dora Lopes. Espantei-me porque Do-ra Lopes era professora muito querida de nosso Grupo Escolar, mas não era a ela a quem Ilton se referia, e, sim, à Dora Lopes cantora da Rádio Nacional do Rio. Eu tam-bém associava o nome dele a outro Hilton que fazia mui-to sucesso na época como centroavante do Bangu (onde também jogavam Zizinho e Ubaldo, este famoso por seus gols "espíritas", ou seja, sem ângulo), do Rio, com sua marca de artilheiro nato.

Dentro da instituição da tropa, havia também aquilo que os antropólogos chamam de ritos de iniciação. Um deles

era o amansamento de burros ainda jovens, e, portanto, bravos. Era preciso montador de coragem para a tarefa; um deles, empregado de Marciano e marido da Rebeca, se chamava

Fruto. E, para um garoto como eu, era festa assistir ao amansamento, pois o burro, ainda jovem, resis-tia, corcoveava, saltava, se debatia e o montador tinha de permanecer firme na sela. Após muito tempo, o burro se cansava, conformava-se com a sina de ter de carregar pessoas e cargas para o resto da vida, e a cerimônia tinha fim. O burro estava amansado.

Próximo capítulo:

 

As viagens a Ponte Nova e Rio Casca

 

Memórias do Grama dos anos cinquenta (VI)

Tropeiros

Francisco de Assis Braga

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