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O Boi e sua senhora
O Boi e sua senhora

 

Memórias do Grama dos anos cinquenta (III)

O Boi e sua senhora

Francisco de Assis Braga

No último capítulo, falei da cebola. Mas não posso me esquecer de outras culturas. Mencionei o milho e o arroz, mas nada disse do tomate.

Pois bem, nos anos cinquenta o Grama também produzia tomate. Não em grande escala, como a cebola, mas havia um ou outro produtor da fruta. O plantio era feito com amparos de bambu, de modo que os ramos crescessem e fossem ali amarrados. Todo cuidado era pouco com relação às pragas, existindo mesmo máquina de pulverizar agrotóxico que o operador amarrava nas costas, como se fosse mochila, e, com ela, aspergia a plantação.

Depois de formada, a cultura, vista de longe, proporcionava belo espetáculo de verde; e, em vista próxima, era luxo para os olhos ver os frutos grandes, verdes ou maduros, pendendo da planta e como que pedindo para serem colhidos.

Na colheita, o tomate era encaixotado para venda, que – parece-me – não era compensadora. Suponho que, em termos de Estado de Minas, a oferta devia ser muito grande, e, consequentemente, os preços, baixos. De modo que se tratava de cultura aleatória e à qual poucos se dedicavam. Ia e vinha, mas não tinha, conforme se diz hoje, vida sustentável.

De modo que a pecuária era um dos sustentáculos da economia gramense. Algo que se explica, dado o relevo montanhoso da região, favorecendo não a agricultura e sim a formação de pastos.

De modo que o boi e sua senhora, a vaca, foram companheiros meus nos anos de juventude. Havia grandes rebanhos, nas fazendas de Glicério e Minzinho.

Parte do gado era destinado ao corte, parte – a maior delas - à produção de leite, e parte ao trabalho, como arar terra e puxar o famoso carro de bois.

Meu pai tinha pequeno carro de bois e dupla de animais, apelidados de Presidente e Canário, que o puxavam. Numa época de quase inexistência de veículos automotores, o carro de bois tinha grande importância como transportador de mercadorias. E era delicioso andar num deles, pela lentidão, que permitia curtir a paisagem, e também pelo canto das rodas, chiado produzido pelo atrito do eixo com seu encaixe. Quem quiser sentir o lado poético, lancinantemente evocativo do canto dos carros de bois é só ver as cenas iniciais do filme Vidas Secas, dirigido, em 1962, por Walter Lima Junior, e que teve como roteiro famoso romance de mesmo nome, de Graciliano Ramos.

Mas o boi servia também como alimento. Lembro-me de que ainda muito jovem assisti, do início ao fim, à morte e preparo de um boi, por Chico Ribeiro, açougueiro da época. O fato ocorreu na Rua de Baixo, com muitos curiosos assistindo. Depois de morto com uma machadada na nuca, o boi era todo fatiado e dele tudo se aproveitava, a partir do couro, indo até as partes nobres (filé, acém, etc.). Só sobravam os chifres e as tripas. E, por cima, como que investigando se algo iria sobrar para eles, esvoaçavam bandos de urubus. Urubus, aliás, eram presença constante nos céus gramenses, voando a grande altura e tentando descobrir, por seu olfato poderosíssimo, se lá embaixo não haveria cadáver insepulto, de um bezerro morto, por exemplo, ou outro ingrediente disponível para seu macabro banquete.

Mas, se a memória não me trai, pouca gente comia carne de boi, naquele tempo, a preferência recaindo sobre o porco, do qual também tudo se aproveitava. O toucinho, mergulhado na gordura do próprio porco, em panelas de pedra, durava meses. E do toucinho saía o famoso torresmo, item imprescindível da cozinha mineira.

Também famílias muito pobres conseguiam sustentar a criação do porco. Lembro-me de morador – Sr. João Delfino, homem, ao mesmo tempo, muito pobre e muito religioso - da antiga Fazenda da Vitória, na época propriedade de Glicério -, que recebia de meu pai a incumbência de, vez ou outra, engordar leitão ainda novo e magérrimo. O animal era levado e criado solto, alimentando-se do verde e passeando livremente pela propriedade. Depois de alguns meses, o Sr. João voltava e dizia que o capado – era esse o nome que se dava ao porco, depois de castrado – estava no ponto. O engordador ficava com a metade, e, como era muito pobre, para ele ter cinquenta por cento de um porco era algo de inigualável.

Dizia-se, então, que, em casa de pobre, quando se matava um porco, até as tramelas da casa se alegravam, pois ficavam marcadas pela gordura das mãos que as moviam.

A morte do porco e seu preparo constituíam espetáculo inesquecível, uma vez visto por olhos de adolescente. O porco, já gordo, era simplesmente apunhalado no coração e, depois de morto, acendia-se pequena fogueira sobre ele para queimar-lhe os pelos, trazendo o cheiro característico de pele queimada. Em seguida, do mesmo modo que se fazia com o boi, o porco era retalhado e dele tudo se aproveitava. Acodem-me à lembrança os miolos do porco, que, dependendo do modo como eram preparados, tinham sabor muito apetitoso.

Da vaca, senhora do boi, vinha, sobretudo, o leite. Nos anos cinquenta, fui vendedor de leite pelas ruas do Grama. Havia algo como que um colete de tecido, onde minha mãe punha as garrafas e lá saía eu, vendendo leite, em garrafas de vidro retornáveis – o comprador despejava o líquido em vasilha sua e me devolvia o litro. Como sempre fui muito ansioso, atrapalhava-me, por vezes, com o troco, que era dado em moedas, no dinheiro da época – o cruzeiro antigo, que vinha dos anos quarenta, quando substituiu o mil-réis, tendo morrido lá pelos idos de 1966, quando Castelo Branco era Presidente. Foi, durante curto tempo, substituído pelo cruzeiro novo, que nada mais era do que o cruzeiro antigo com a supressão de três zeros. Sobreviveu até fevereiro de 1986, quando foi destronado pelo famoso cruzado (alguém se lembra dos fiscais do Sarney ?), de vida ilusória e efêmera.

E não se tratava deste leite pobre, tipo longa vida, que se compra nos supermercados de hoje. Não, tratava-se de leite rico, com muita gordura e cálcio, requerendo apenas ser fervido – de modo a evitar contágio da febre aftosa – para ser bebido.

E quem dos leitores naqueles saudosos tempos de outrora se levantou cedo para assistir à tiragem do leite ? Tive a ventura de fazê-lo, se bem que por poucas vezes. O espetáculo era comovente. As vacas, muito serenas e pacíficas, se “encostavam” – era este o nome – e o tirador, após amarrar-lhes as pernas, de modo a evitar coices inesperados, começava, pacientemente, a tirar o leite. Na época, não havia as máquinas tiradoras de leite que conhecemos hoje, e, como algumas das vacas – as holandesas – chegavam a dar até 22 litros numa tirada, o tirador precisava ter mãos resistentes, pois tinha de apertar as tetas da vaca dezenas de vezes, antes de terminar seu trabalho. Durante todo o tempo da tiragem, as vacas ruminavam pacientemente. E o leite saía espumoso e quente, alguns preferindo tomá-lo de imediato, mesmo antes da fervura, pelo simples prazer de tê-lo como alimento, assim que tirado. Que diferença para as crianças de hoje que, principalmente nas grandes cidades, imaginam que o leite é fabricado pelos produtores de laticínios, posto em caixinhas e vendido nos supermercados !

Mas o leite tinha como uso, acima de tudo, a fabricação de queijo. O queijo mais famoso do Grama era fabricado por Jácomo Russo e família, que tinha trazido técnica ancestral de suas origens italianas. Tratava-se do famoso queijo “cabacinha”, pois tinha a forma de cabaça. Era delicioso e composto de várias camadas, que podiam ser desfolhadas uma a uma.

Mas havia, também, o tradicional queijo branco de Minas, até hoje presente em nossos supermercados. Nos anos cinquenta, os melhores de que me lembro eram de fabricação caseira, oriundos do sítio de pequenos proprietários. Um deles, de nome Zé Gregório, costumava trazer seus queijos para meu pai. Todos muito brancos e com preço baixíssimo. Eu até imaginava se aquilo dava lucro ao produtor, pois sabidamente, muitos litros de leite são necessários para se produzir queijo de um quilograma, além de coalho e outros ingredientes, como o sal.

E tal queijo era e é muito apreciado, notadamente por seu baixo teor de gordura, além do sabor agradável, principalmente quando gelado.

Nos anos cinquenta, meu pai costumava se consultar com o então chamado médico de família, homem afável e de cabelos brancos, um tal de Dr. Lins, em Ponte Nova, e, indo até ele, era imprescindível que fosse levado um queijo. E o Dr. Lins ficava tão embevecido pela presença do queijo que – imaginava eu, com a mente de adolescente – o diagnóstico ficava em segundo plano.

Além do queijo, havia requeijões de linhagem diversa, todos muito saborosos. E era verdadeiro festival gastronômico a reunião de pessoas amigas para comerem queijo com goiabada cascão ou geleia de mocotó.

E do leite se produzia também a manteiga. A juventude de hoje talvez não o saiba, mas o Grama já teve fábrica de manteiga, pertencente ao Minzinho e localizada em prédio da Rua de Cima, próximo de onde hoje fica o hotel da cidade. Na época, eu ia levar leite para tal fábrica e ficava maravilhado vendo os manteigueiros trabalharem. Lembro-me de pelo menos dois nomes de artesãos do produto: Sr. Ilídio manteigueiro – assim era chamado – e Zitinho (ainda deve estar vivo. Por onde andará ? Certa época, meus pais alugaram o Jeep de Minzinho para uma visita ao Pe. Antônio, em Urucânia, e Zitinho foi o motorista.) . Em plataforma horizontal e redonda, feita de madeira, girando constantemente, a manteiga era preparada, com muito uso de sal e água, até que, pronta, era embalada em latas hermeticamente fechadas.

A manteiga podia, também, ser produzida em casa, e minha mãe, vez ou outra, o fazia. E eu, boquiaberto, ficava assistindo às fases do processo, muito simples, aliás.

Todo aquele mundo de manteigueiros ou de manteiga artesanal, feita em casa, para as pequenas cidades acabou, e vivemos todos das manteigas produzidas pelos grandes fabricantes e distribuídas pelo restante do país. Economias de escala! – dirão alguns. Talvez seja.

Do senhor porco, além da carne, muito apreciada então, vinham também as linguiças e o famoso chouriço, este especialmente apreciado mim por ser feito de tripa e sangue, que eu julgava portador de grandes potencialidades nutrientes. Certa ocasião, em viagem pela Espanha, pedi um chorizo no restaurante, e me surpreendi quando veio prato completo, porque chorizo, para eles, nada mais é do que um contrafilé com osso.

Mais tarde, surgiu o pão de linguiça, que devia ser objeto de encomenda especial ao Toni padeiro; era muito apetitoso e procurado, algo que, suponho, deve existir ainda hoje.

Próximo capítulo: Memórias do Grupo Escolar Mariano Gomes


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