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Viagem de caminhão
Viagem de caminhão

 

 

 

Memórias do Grama dos anos cinquenta (VIII)

 

Viagens de caminhão, táxi, ônibus e trem

Francisco de Assis Braga

Viagem de caminhão

 

 

Ainda muito jovem, bem na primeira metade dos anos cinquenta, fiz minha primeira viagem para fora das fronteiras do Grama. Fui a Rio Casca – as pesso-as simples diziam "Ruscasca" -, e de caminhão.

 

Viajei no caminhão que, na época, não sei se per-tencia a Jujuca ou Zizinho Brandão. O motorista, certamente, era o Levindo, que morava no então chamado Largo da Rua Nova (hoje deve ser Praça da Rodoviária) e tinha filho de nome Laércio, talvez um pouco mais velho do que eu, músico dos bons, e que, ainda muito cedo, veio para São Paulo. Nunca mais tive notícias do Laércio. Alguém sabe dele ?

 

Levindo era sujeito alegre, muito brincalhão e com o cabelo caindo pela testa. Foi sucedido por Cirilo, casado com Miruca e pai do Flavinho e Hélio, este último empregado do Kolinha e, por consequência,

 

torcedor entusiasmado do Flamengo. Cirilo era ho-mem sério, cumpridor de deveres, com o chapéu sempre voltado para cima. Pena que tenha nos dei-xado prematuramente. O ajudante de Cirilo (pois do Levindo não estou certo quem foi) era o Zé Camilão, casado com Odila, filha de Geraldo Beata.

 

 

O caminhão, de manhã, ficava postado defronte à loja de Zizinho, esperando por carga e passageiros, até o momento de partir. Olívio Correio era seu passageiro habitual. Certa vez, estando o veículo parado, o João Célio, filho do Zizinho e um dos garo-tos mais inteligentes que o Grama já viu, acabou mexendo tanto no volante e em outras partes que o motor pegou e o caminhão se movimentou, cau-sando grande comoção e estardalhaço, felizmente sem maiores consequências.

 

Era possível viajar na boleia, com mais conforto po-rém pagando mais caro, ou então na carroceria. Penso que foi nela onde fui, meu pai viajando na boleia, ou cabine, onde, além de conforto, o passa-geiro podia desfrutar do papo do motorista.

 

A chegada a Rio Casca foi um acontecimento para mim. Pela primeira vez, via uma cidade calçada. Na volta, fui objeto de troça dos familiares, pois eu dizia que em Rio Casca havia muitas casas "uma sobre a outra", obviamente referindo-me aos sobrados, existentes em maior quantidade, pois no Grama eu tinha visto apenas dois: o de Juquinha Baião e o de Olívio Leão.

 

 

Em Rio Casca, fui com meu pai ao armazém de ata-cado (outra novidade) de Nicolau Elias (teria sido turco ?). A finalidade era comprar suprimentos para a venda a varejo que meu pai tinha na Rua de Cima. Percebi que o Sr. Zé Braga tinha bom crédito e foi tratado com muito respeito.

 

Na época, Rio Casca também supria o Grama em muitas outras mercadorias que chegavam de trem. A juventude de hoje precisa saber que, nos anos cinquenta, o trem era grande transportador de car-ga e de pessoas. A carga podia vir de Ubá, Ponte Nova ou mesmo do distante Rio de Janeiro, trazida pela famosa Estrada de Ferro Leopoldina (em ho-menagem à nossa imperatriz)

Railway.

Em Rio Casca tomei conhecimento do personagem conhecido como Furriel Ângelo, dito como fundador do município, e que tinha (ainda deve ter) estátua na praça em frente da igreja matriz. Foi lá, também, que fiquei conhecendo o Lili, filho do Sr. Olinto

 

Bayão e irmão do Arthur. Lili possuía loja de tecidos e armarinhos na principal Praça de Rio Casca, onde ficava a sede do Automóvel Club (e tal nome me in-trigava, pois se o Grama nem sequer automóveis ti-nha, como é que Rio Casca tinha um Automóvel Club ?). Lili me passou a imagem do homem empre-endedor, do trabalhador incansável, sempre em busca de objetivos mais altos. Tinha filho de nome Maurício (por onde anda ?), pessoa muito agradável e que me levou para conhecer o cinema de Rio Casca. Lembro-me de ele me ter dito que os filmes mais prazerosos eram os da

Metro, e que sabia-se que os melhores filmes daquela companhia eram exibidos quando o leão urrava três vezes ! Oh, do-ce e fértil imaginação da juventude !

Viagens de táxi

 

 

Nos anos cinquenta, o Grama não tinha táxis. Os ji-pes de Glicério e Minzinho podiam exercer tal fun-ção, mas sempre em caráter subsidiário. Lembro-me de viagem que fizemos eu, meus pais e talvez a Rita, minha irmã (não estou muito certo) no jipe de Minzinho, a Urucânia, para visita ao Pe. Antônio. O motorista foi o Zitinho, que, em circunstâncias nor-mais, trabalhava na fábrica de laticínios do Minzinho. No meio da viagem, o veículo emperrou, al-guém passou por nós e perguntou ao Zitinho se ela estava indo para Urucânia (de onde vem este nome ?), ao que ele, tentando reparar o motor do veícu-lo, respondeu, com senso de humor: - É o que pre-tendemos !

 

Na época, achei curioso que Urucânia tivesse dois padres: o Pe. Antônio, que se limitava a receber as pessoas em sua casa, e o Pe. Efraim, que era o vigá-rio da paróquia.

 

Pe. Antônio nos recebeu muito bem, gozava de boa saúde e tinha voz forte. Ficou muito contente em rever minha mãe, a quem chamava simplesmente de "Maria". Quando minha mãe se casou pela pri-meira vez, morava na então Praça da Matriz, e foi vizinha de Pe. Antônio, que habitava casa que pre-sumo ainda hoje existir e que fica do lado esquerdo da Igreja. Mamãe me dizia que eles se falavam mui-to e que ela gostava de trocar ideias com o Pe. An-tônio, notadamente após ter ficado viúva.

 

Concluída tal viagem, meu pai me pediu para per-guntar quanto teria sido o custo. Fui até a loja do Minzinho e, tímido como era, acabei me atrapa-lhando e, dirigindo-me ao Evaldo, soltei a pérola: -

 

"Papai mandou perguntar quanto é o jipe !" Wal-domiro Paixão, que estava presente, caiu na garga-lhada e disse que não sabia que meu pai pretendia comprar um jipe. Levei um

carão, conforme se diz na gíria.

 

Mas o taxista preferido dos gramenses era Taqui-nho, de Rio Casca, com seu Ford 1929. Como, na época, não havia celulares e, salvo equívoco meu, tínhamos, no Grama, apenas um centro telefônico, na casa onde ficava a loja do Minzinho, ignoro como ele era convocado para as viagens. Mas o certo é que, quando necessário, lá estava ele.

 

Era bem humorado e, apesar da aparente fragilida-de de seu carro, enfrentava o pó ou o barro das es-tradas com intrepidez. E, quando viajávamos com ele, minha irmã Ioná sempre me pedia para me agasalhar bem, por causa do frio que fazia na mata de Dona Zina (e ponham frio nisso !). É por isso que digo e repito: -

Oh, que saudades que tenho da au-rora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais !

 

Na verdade, só vim sentir frio de verdade quando me mudei para São Paulo. Garoa e frio intenso, de maio a setembro, deixando o curto e moderado inverno de Minas como simples lembrança de tempe-raturas aprazíveis. Quando morei em Belo Horizon-te, observei que, passados os meses de junho e ju-lho, o inverno acabava, agosto se caracterizando mais como o mês das grandes ventanias. Oh, como ventava no mês de agosto nas manhãs em que eu saía a pé do bairro de Carlos Prates, atravessava ex-tenso terreno baldio e saía na Rua Pe. Eustáquio, 2027, onde ficava a

Móveis Imec de meu irmão Ne-nê !

 

Viagens de ônibus

 

Hoje, de carro, e sem correr muito, vai-se do Grama a Ponte Nova em 45 minutos; de ônibus, mesmo com as paradas habituais, consome-se uma hora.

 

Nos anos cinquenta, a coisa era diferente e a via-gem de ônibus a Ponte Nova era verdadeira epo-peia, consumindo nunca menos do que três horas.

 

Como a distância a percorrer era "grande", a via-gem começava cedo: às 07:00, se não me engano, obviamente não em ponto - pois estamos no Brasil -, o ônibus lentamente iniciava a grande jornada. Cabe observar que as pessoas mais simples não di-ziam "ônibus", mas "auto". Vó Conceição, por

 

exemplo, se referia ao "auto" e não ao "ônibus". E uma vez ela me disse que julgava o "auto" algo mui-to confortável !

 

Pois bem, o ônibus, ou "auto", era do tipo jardinei-ra, marca

Chevrolet. Presumo que, nos anos qua-renta e início da década seguinte, fosse apenas montado no Brasil, com sua fabricação plena só ocorrendo tempos depois, na era JK.

 

O proprietário, no início, era Jujuca. No final dos anos cinquenta, Jujuca se mandou para Belo Hori-zonte, onde investiu em lotações, tendo dificulda-des com a nova empreitada, pelo menos no início. A última vez que eu o vi foi num dia de semana. Eu ti-nha ido a pé ao Colégio Estadual, no bairro de Santo Antônio, para saber de minhas notas. Foi em 1963, ano da morte de Kennedy e governava o Brasil o Sr. João Belchior Marques Goulart, o qual seria, no ano seguinte, gentilmente convidado pelos militares a deixar o poder e ir morar no Uruguai. Ao voltar, descendo por uma das ruas do bairro, encontrei-me com o Jujuca, que me cumprimentou de modo efu-sivo e conversamos por algum tempo. Depois disso, nunca mais o vi.

 

Jujuca foi um empreendedor do ramo de transpor-tes, sendo interessante observar como cada um, nesta vida, tem vocação própria, todos os seus ir-mãos tendo seguindo rumo diferente. Morava na Rua Nova e tinha como esposa a Dona Aída, tam-bém professora, e filho de nome Márcio, mais co-nhecido como Marcinho, que era baixinho, mas co-rajoso. Certa feita, depois das aulas, enfrentou em briga célebre ao Lúcio Russo, que tinha físico mais avantajado, mas não recuou, enfrentando a liça com denodo. A briga terminou empatada, com os colegas de ambos apartando-os.

 

O motorista do ônibus, nos tempos de Jujuca, era o Sr. Vicente, homem calmo, bonachão, de conversa lenta e que morava, segundo me informou o Cici, de Oscar, numa das travessas da Rua Nova que ia dar no campo de futebol.

 

Seu auxiliar, ou cobrador, era o Luiz da Luz, perso-nagem marcante na história do lugar, e que se ca-sou com Maria, que trabalhava para o Chichico Ni-colau. O Luiz acabou aprendendo a dirigir e, mais tarde, passou a ser o motorista da perua que tam-bém fazia o percurso Grama/Ponte Nova, só que via Jatiboca, e em menos tempo, cerca de 02:30.

 

Anos depois, a linha de ônibus foi comprada pelo Jácomo Russo, o motorista era o Zazinho, pai de muitos filhos, e o cobrador o Zé de Maé, que, na hora de cobrar a passagem, costumava brincar com os passageiros, dizendo: - Paga e não bufa !

 

Mas voltemos ao início da grande viagem ! Saindo da Praça da Matriz, com grande parte dos passagei-ros vestindo guarda-pó, conforme informei no pri-meiro destes textos, o ônibus ganhava a Rua de Bai-xo, passava pelas casas do tio Lourenço, Dico Brucu-tu, Nôra, Zé Martins alfaiate, Juraci de Bebém, Pe. Russo, etc. e ganhava a estrada rumo a Rio Casca.

 

Se o tempo fosse de chuvas, a viagem não ocorria, pois até caminhões tinham dificuldades para passar pela região de Casagrande.

 

 

A chegada a Rio Casca tinha parada, pois muitos desciam ali. Prosseguindo, havia outra parada pro-gramada em Piedade de Ponte Nova, da qual muito me lembro por dois motivos: a) a cidade era menor do que o Grama, e parecia não ter futuro, mais se assemelhando àquelas cidades fantasmas e vazias do faroeste americano, na hora do duelo entre os pistoleiros; b) era a terra do Sr. Nelson, dedicado ao comércio de selas para cavalo (estarei certo ?) e

 

que, no Grama, se hospedava numa das casas de Antônio Marciano, em frente à residência de Rai-mundo Caetano. Era homem pacífico, muito educa-do e de bom papo. Passava longos períodos no Grama e, mesmo sozinho, lidava bem com a soli-dão.

 

E, até que enfim, depois de três horas ou mais de viagem por estrada de terra sinuosa, ocorria a che-gada. Antes, havia uma parada em Palmeiras, e, em Ponte Nova, não havia propriamente uma rodoviá-ria, luxo de tempos futuros, ficando os ônibus esta-cionados (havia os de Guaraciaba, Raul Soares, Je-queri, etc.) em terreno próximo do rio e de bar exis-tente nas imediações da antiga rodoviária (que pre-cedeu a atual), em região onde se localizavam, também, os armazéns do Pio Moreira. Não posso me esquecer de tal bar pois foi nele que, pela pri-meira vez na vida, vi um liquidificador Walita fazer vitamina de frutas diversas, e seu dono proferir, já em 1960, e para meu espanto, vigoroso discurso pró-candidatura de Jânio Quadros à presidência da República. Eu era Lott, por causa de Juscelino, e achava Jânio pra lá de esquisito !

 

Defronte daquele bar ficava estacionado o ônibus da Pássaro Verde, também do tipo jardineira, e que se destinava a Belo Horizonte, com estrada de terra até Itabirito, onde começava o asfalto. A viagem consumia 04:50, sendo fruto do pioneirismo dos Irmãos Pereira. Em 1960, sendo interno do Colégio D. Helvécio, recebi visita de meu irmão Nenê, que morava em Belo Horizonte, e que me levou de pre-sente rica edição da obra de Camões,

Os Lusíadas, que, confesso ao leitor, tive muita dificuldade em ler. Terminada a visita, eu e o João, que ainda era salesiano e se encontrava no colégio de Ponte No-va, fomos levá-lo até o ônibus que o conduziria de volta à capital.

Ia-se a Ponte Nova para estudar (Colégio D. Helvé-cio e Escola Normal N.S. Auxiliadora), fazer compras (nas Casas Gomes ou Brasiltex, ou nas farmácias, a cidade não tendo, então, nenhum supermercado, e apenas uma pífia Livraria Pena), ou, então, para buscar ajuda médica. Na época, inexistiam os pla-nos de saúde de hoje, de modo que ou as pessoas recorriam a médicos particulares (meu pai gostava muito do Dr. Lins) ou se valiam da saúde pública. Não havia, ainda, o Gavazza, mas apenas o Hospital

 

N.S. das Dores, que, salvo engano meu, é instituição herdada do século XIX. Pequeno detalhe biográfico precisa ser citado: não foi na Livraria Pena, mas em papelaria que ficava mais abaixo que, pela primeira vez, folheei (pois não tinha como comprá-lo) o livro

Os Sertões, de Euclides da Cunha, da Editora Fran-cisco Alves. O livro acabou se tornando verdadeira obsessão para mim, que só teve alívio quando, anos mais tarde, li grandes trechos dele (a leitura da obra toda é pesada e cansativa, por causa do estilo do autor). De qualquer modo, é escrito indispensável, possuindo textos antológicos. Ficaram-me gravadas diversas passagens; por exemplo, quando ele diz: De repente, aproxima-se a seca. O sertanejo advi-nha-a e prefixa-a, graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo . . .

Ou, então, quando descreve o sertanejo (permita-me o leitor, principalmente se jovem, citação mais longa. Leia até o final, pois valerá a pena):

 

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neu-rastênicos do litoral. A sua aparência, entre-tanto, ao primeiro lance de vista, revela o con-trário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

 

 

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típi-ca dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agra-va-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um cará-ter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primei-ro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela.

 

Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremen-te, num bambolear característico, de que pare-cem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas.

 

E se na marcha estaca pelo motivo mais vul-gar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeiramente conversa com um ami-go, cai logo — cai é o termo — de cócoras,

 

 

 

 atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fi-ca suspenso pelos dedos grandes dos pés, sen-tado sobre os calcanhares, com uma simplici-dade a um tempo ridícula e adorável.

 

É o homem permanentemente fatigado.

 

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscu-lar perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendên-cia constante à imobilidade e à quietude. En-tretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

 

Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desa-parecer de improviso.

 

Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigin-do-lhe o desencadear das energias adormeci-das. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na es-tatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, al-ta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantâ-nea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu ca-nhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

 

Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracteriza-do sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas. É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e de-selegante; sem posição, pernas coladas ao bo-jo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta ati-tude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase trans-forma o campeão que cavalga na rede amole-cedora em que atravessa dois terços da existência.

 

 

 

 

 

Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufan-do-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas. Vimo-lo neste steeple chase bárbaro.

 

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coiva-ras, moitas de espinhos ou barrancas de ribei-rões, nada lhe impede encalçar o garrote des-garrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo...

 

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, reali-za a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando va-los e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais morden-tes; precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabuleiros...

 

 

(Fim da transcrição. Jovem de ho-je: quando a droga lhe tentar, fique dependen-18

te dos grandes escritores, como Euclides da Cunha. Dou-lhe garantias estritas de que você nunca, jamais se arrependerá !)

 

Em Ponte Nova, na hora do almoço, quem podia ia à casa de parentes; quem não os tinha comia o cé-lebre "prato feito", com arroz feijão, carne e farofa. Bem baratinho.

 

Às 15:00, começava a longa viagem de volta. O ôni-bus, novamente, parava em Palmeiras, e muitos o pegavam lá. Passava por Piedade, Rio Casca e, por volta de 18:00, a viagem terminava na Praça da Ma-triz, com os passageiros e seus guarda-pós. Estava finda a grande jornada !

 

Viagens de trem

 

Mas havia, também, as viagens de trem. A juventu-de de hoje praticamente não sabe deles como nós, com toda a sua importância nos anos cinquenta.

 

Ponte Nova era servida pela Central do Brasil e pela Leopoldina; Rio Casca, só pela última.

 

As estradas de ferro, no Brasil, foram construídas ainda no século XIX, e por ingleses. Alguns dizem que o traçado das linhas é tortuoso, tornando as viagens longas e cansativas, porque os engenheiros ganhavam por quilômetro construído. Mas não é de crer em tal tese; na verdade, a engenharia da época não tinha recursos para fazer túneis e pontes, don-de ser mais conveniente e prático contornar do que vencer obstáculos naturais, notadamente em Esta-do de relevo tão acidentado como é Minas Gerais.

 

Na época da guerra (1939-45), o Brasil passou a ter vultoso superávit comercial com a Inglaterra, a qual, para se livrar do ônus de ter de pagá-lo, preferiu transferir para nós as estradas de ferro que seus engenheiros haviam construído (apenas em São Paulo havia algumas linhas de propriedade de parti-culares brasileiros, todas estatizadas em 1966, com a formação da Fepasa, cabendo mencionar o gran-de escândalo que é o fato de os antigos acionistas nunca terem recebido o custo da expropriação, apesar das inúmeras sentenças judiciais a seu fa-vor).

 

 

Quando houve a transferência, os americanos acon-selharam o governo brasileiro a não estatizar as li-nhas nacionalizadas, mas foi estatização o que se fez, com a criação da famosa Rede Ferroviária Fede-ral. Em pouco tempo, as linhas, locomotivas e vagões envelheceram ou foram sucateados. A má ad-ministração era constante, os atrasos, tão costu-meiros que, em Ponte Nova, contava-se a anedota do sujeito que chegou à estação de Palmeiras e perguntou – "Por favor, a que horas chega o trem das 15:00 ?" Era comum chover dentro dos vagões e muitos passageiros, no verão, viajavam munidos de guarda-chuvas. Era algo deprimente !

 

Porém, na época das chuvas, não havia alternativa a não ser o recurso ao trem. Lembro-me de que, cer-to dia, saímos de Ponte Nova, eu e meu pai, em trem destinado a Rio Casca. Na viagem, encontra-mos o Pe. Russo. Porém, no meio do caminho, em cena bastante costumeira, o trem "descarrilhou", ou seja, saiu dos trilhos, e, em plena noite, com chuva e frio, ficamos horas à espera do socorro.

 

 

Minha irmã, Maria do Carmo, lembrou-se de que

 

". . .em um princípio de ano, precisávamos ir para o colégio e não havia ônibus, por causa das chuvas. Fiquei rezando para aparecer um jeito pois adorava o colégio. Então fomos de jipe com Zizinho Brandão até Rio Casca e, lá, pegamos o trem. Demorou quatro horas e meia para chegarmos a Ponte Nova e tivemos que levar matutagem (merenda) para comer no caminho, pois nas paradas (esta-ções de Bituruna, Bandeiras, etc.) não havia lanchonetes. Levamos frango assado e a via-gem foi uma delícia. Saímos de Rio Casca ao meio-dia e chegamos a Ponte nova às 4,30 h da tarde".

 

Veja o leitor que descalabro: numa viagem de Rio Casca a Ponte Nova, que, hoje e de carro, deve-se fazer em vinte minutos, consumia quatro horas e meia ! E isso quando o trem partia na hora, pois a regra eram os atrasos.

 

Em outra ocasião, no final do ano, época de chuvas, tive de ir de trem de Ponte Nova a Rio Casca, pros-seguindo na viagem a cavalo até o Grama. Viajei com o João Bosco Lopes e o Zé Maria Braga, filho do tio Lourenço. Em Rio Casca, dormimos na casa do Nilo Brandão. Houve desencontro nas comunica-ções e o Zé Maria acabou tendo de fazer a viagem a pé, obviamente com grande irritação.

 

 

Em outra ocasião – isto já no início dos anos sessen-ta -, eu e meu pai decidimos ir de Ponte Nova a Belo Horizonte de trem. A viagem, extremamente cansa-tiva, demorou nada menos do que doze horas (ha-

 

via uma estação de parada famosa, de nome Burni-er).

 

Mas era por meio do trem que mercadorias, jornais e revistas chegavam à zona da Mata. E era aprazível ver os vendedores, dentro dos vagões, anunciando a venda de doces, biscoitos ou das revistas

Manche-te e O Cruzeiro !

Cheguei a ir de caminhão (de Zizinho Brandão) à es-tação de Rio Casca para retirar mercadorias vindas de Ubá. Havia um atacadista em Ubá com o nome de Raul Senra & Cia. Ltda., e meu pai comprava de-le. E o curioso era que o viajante de Raul Senra era um senhor sempre bem vestido, por mais calor que fizesse, e, muitas vezes, em pleno domingo, com a venda fechada e eu, acompanhando o futebol pelo rádio, ouvia alguém chamando por meu pai . . .e era ele, o viajante de Ubá.

 

Em volta das estações, as cidades mostravam pro-gresso. Em Rio Casca, havia o famoso Foch Hotel, que sempre aguçou a curiosidade de minha irmã, Leleta, por causa do nome, que deve ter sido imagi-nado na época da primeira guerra mundial (1914-18), pois nela se destacou o famoso General Foch, francês. E, em Ponte Nova, também nas proximidades da estação, havia um grande hotel, de cujo no-me não me lembro, em cujo térreo havia um bar com sinuca, e que, nos anos cinquenta, já mostrava claros sinais de decadência, tendo sido, afinal, de-molido.

 

Próximo capítulo:

 

 

O Grama e a medicina nos anos cinquenta

 

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