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História da Cebola 2º Cp
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Memórias do Grama dos anos cinquenta (II)

O Grama e a Cebola

Francisco de Assis Braga

 

Ignoro, ao certo, quando começou – se nos anos quarenta, ou se ainda nos trinta -, mas o certo foi que, os anos cinquenta do século passado foram a época de ouro da cultura da cebola no Grama. Se não o maior, o município foi um dos maiores produtores no Estado, quiçá no Brasil.

E a vida da então pacata cidade, de ruas descalçadas e pessoas, quase todas, de pés nus vivia autêntico frenesi, desde a época do plantio até o momento da colheita e da venda.

O plantio tinha início com a compra das sementes, que vinham de Ponte Nova, ou, às vezes, até pelo correio de Oscar e Chichica. Uma das marcas – se bem me lembro – se chamava Costal.

A semeadura se dava ali por fevereiro, pois, em março/abril, tudo tinha de estar pronto para o plantio. Depois de semeadas, as sementes formavam leiras. Tais nomes são citados pois a cultura da cebola tinha jargão e vocabulário próprios, como todo campo de atividade humana, e as gerações jovens devem ser lembradas daquilo que o povo dizia, naquela época.

As leiras eram pequenos canteiros de terra, que deviam ser aguadas com frequência.

As mudas cresciam e, quando no ponto de plantio, deviam ter uns 15 a 20 cm. de comprimento. Já traziam uma cebolinha, que era enfiada na terra, quando do plantio.

A época do plantio – era em abril ? se não, os que viveram na época me corrijam – implicava em várias atividades. Primeiramente, era necessário preparar a terra, remexendo-a, e fazer canteiros, que tinham largura de uns 5 a 8 metros e comprimento igual ao da gleba onde existiam.

Entre um canteiro e outro, ficavam um rego por onde deveria passar a água e os poços, que a acolhiam.

Mas de onde vinha a água ? – perguntarão os curiosos. E a interrogação procede, pois o Grama, na época, não tinha rede pública de água. Lembro-me de que, ainda em 1964, na véspera do Comício da Central do Brasil, em 13 de março, quando Jango pôs sua cabeça em jogo, eu conversava com o Sr. Moreira, misto de chefe de obras e engenheiro sem diploma, que tinha sido mandado ao Grama para puxar a água lá do Bonfim, fazendo-a desaguar na caixa d’água que existe no pasto do Zé Braguinha. Pois bem, na época da deposição do Jango, a mencionada caixa d’água se encontrava em adiantado estado de construção, mas ainda não pronta. A data de sua entrada em funcionamento me é desconhecida, pois não morava mais na cidade.

Voltemos à água e à cebola. A água era obtida do ribeirão, por meio de rodas d’água, produto do gênio da carpintaria gramense. Eram feitas de madeira, giravam sobre dois troncos que as sustentavam e seu giro era empurrado pela força da água ao penetrar nos canecos - geralmente, latas usadas de óleo combustível, marca Esso ou Texaco, que ficavam nos limites da roda e cuja função principal era captar a água quase minguante (pois era período da seca) do ribeirão. Quando subiam, depositavam o precioso líquido numa caixa de madeira e, dali, por duto também de madeira, a água chegava à cabeceira dos canteiros, por meio de regos e até os poços.

Ainda me lembro de que, certa feita, decidi assistir ao primeiro caminhar da água pela terra remexida e pronta para o plantio, até os regos e poços. A cena foi tão extasiante que jamais me sairá da memória. Num de seus poemas, Fernando Pessoa diz que a água é “comum e boa”. Comum – porque pertence a todos; boa – porque sem ela não viveríamos. É algo que nos é dado de graça, porém algo de gracioso e belo, atributos que deixamos de perceber exatamente porque se trata de algo comum e frequente. Quando a maravilha se repete, deixa de nos maravilhar. E, quando falta água, aí, e somente aí, é que percebemos seu imenso valor !

Mas, repito, não me esqueço da primeira vez que vi a água graciosa e lentamente caminhar sobre a terra ainda mexida, abrindo caminho até os poços.

A época do plantio era, como seria, depois, a ocasião da colheita, período de intensa movimentação na cidade. Não me sai da lembrança, por exemplo, as muitas viagens que o caminhão de Glicério fazia para o Bonfim, grande centro produtor, passando rápido e levantando poeira na antiga Rua da Palhada.

Plantada, a cebola exigia que fosse aguada (outro termo da época) diariamente. A aguação se dava através de uma pá que, a partir do poço e movimentada por braços humanos, fazia a água cair sobre a cebola. No final das tardes, quem olhasse os quintais da Rua de Cima veria diversos aguadores trabalhando. Alguns o faziam com tanto gosto que chegavam a cantar ou assobiar. Um dos que aguava a cebola assobiando, e assobiando sem parar as músicas tocadas então pela rádio Nacional do Rio de Janeiro, era Waldomiro Paixão – aguador e assobiador. Waldomiro arrendava o quintal que foi de minha vó Conceição e era plantador de todos os anos.

À medida que a cebola crescia, os quintais ficavam verdes que nem os campos de soja que se veem, hoje, no Paraná e outras praças. As folhas eram ricas e viçosas.

E ouviam-se, então, os primeiros comentários sobre preços, pois a colheita se avizinhava. Sabia-se que os primeiros a colher obteriam os melhores preços.

A colheita era outro período frenético na vida da pequena urbe. Primeiramente, a cebola era arrancada dos canteiros, e via-se, então, que aquela cebolinha, presente nas mudas, tinha-se transformado em rotundo fruto.

Consumada a colheita, a cebola era pendurada, por suas folhas compridas, em pindobas, outro termo usual e corriqueiro na época. As pindobas eram construções de bambus, onde as cebolas deveriam ficar penduradas e ao sol, até que as folhas secassem, pois teriam de ser utilizadas, em seguida, para enrestar a cebola. Enrestar significava fazer réstias, e este termo se encontra nos dicionários. E o enrestamento era feito, geralmente, por mulheres. Quando se ganhava por volume enrestado e não por dia de trabalho, as mulheres que primavam pela rapidez e engenhosidade no enrestamento ganhavam mais do que as outras.

A venda era feita para compradores que vinham de fora, ou – o que era mais frequente – para compradores locais, dentre os quais se destacava Joanito Brandão.

Quando da venda, causava grande alegria ver famílias até então muito pobres ganhar um dinheirinho e, com ele, reformar a casa ou comprar roupas bonitas, trajes domingueiros, ou “roupa de ver Deus”, conforme se dizia na época. Em tempo no qual grande parte da população andava descalça, muitos compravam sapatos bonitos, botas, botinas e borzeguins.

Mas nem todos ganhavam dinheiro. Alguns porque não tinham plantação própria e eram, durante todo o cultivo, meros empregados de outros; também se faziam plantações à meia, nas quais alguém entrava com a terra e insumos e outro alguém apenas com a mão-de-obra. Claramente, nesta segunda hipótese não se ganhava tanto quanto se auferia em plantações próprias.

E outros perdiam dinheiro também porque, na época da colheita, a produção aumentava muito e, de acordo com a lei da oferta e da procura, os preços caíam abruptamente. E a cebola é produto perecível, com pouco tempo começa a brotar ou a apodrecer, de modo que as réstias não podiam ficar muito tempo penduradas, esperando o preço melhorar.

E havia toda uma cultura da cebola. Em matéria anterior, referi-me ao canto poético das rodas d’água, no atrito do eixo com os troncos de sustentação, a trazer canto monótono, mas belo, às enluaradas noites do inverno gramense. Ademais, falava-se de cebola o tempo todo; de quem tinha plantado mais, se Minzinho também estava plantando (Glicério, se não estou sendo injusto, era o maior produtor); onde adquirir as melhores sementes; quem contratar como mulher enrestadeira; quando colher e a quem e por quanto vender . . .

E tenho até irmão, de nome Gabriel, alfaiate na época e meia esquerda do Gramense, que, de repente, teve a ideia de plantar cebola no quintal da casa da mamãe, em plena Praça da Matriz (por ali passava, como deve passar ainda hoje, água que vinha do sítio do Jácomo Russo, daí não precisar de roda d’água) e acabou sendo apelidado de “Nene Cebola”.

A cebola exerceu impacto tão grande sobre mim que, até hoje, quando vou ao supermercado e lá vejo uma cebola, lembro-me do passado. Certa feita, Zé de Paula, farmacêutico dos bons e grande adversário meu no jogo de damas (jogado na venda do Maé), arrendou o quintal da casa que foi de Chico Ricardino, e que, na ocasião, parece-me que era de propriedade do Olívio correio – isto já nos anos sessenta – para plantar cebola. Certo dia, fui até lá com ele para uma visita à plantação e me lembro de ter ouvido dele: - “Olha, Chico, lá em São Paulo, quando vc sentar-se à mesa de um restaurante e pedir um filé acebolado, não vá se esquecer do Grama e da nossa cebola !”. Frase profética, Zé de Paula (por onde anda ele ?), nunca me esquecerei da cebola do Grama !

Próximo capítulo: O Grama, o gado, o leite, o queijo e os requeijões

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