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Memórias 50 anos de Chico
Memórias 50 anos de Chico

 

Memórias do Grama dos anos cinquenta

Francisco de Assis Braga

 

Vivi no Grama desde 1945, quando nasci, até 1965, ano em que vim para São Paulo. No entanto, e a bem da clareza, seja dito que, a partir de 1957, quando fui estudar (curso ginasial) em Ponte Nova, e, depois, entre janeiro de 1961 e dezembro de 1964, quando passei a residir, igualmente para estudar (curso científico), em Belo Horizonte, comecei a me distanciar do Grama de minha infância. Mas apenas em janeiro de 1965, por não conseguir trabalho em Belo Horizonte, foi que me mandei de vez para São Paulo, onde até hoje vivo.

Porém, mesmo de longe, nunca esquecemos a terra onde nascemos. De modo que as páginas que se vão seguir são rememoração, avivamento da lembrança, até onde ela vai, aplacamento da saudade.

De fato, diz Casimiro de Abreu:

Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

Que amor, que sonhos, que flores,

Naquelas tardes fagueiras

À sombra das bananeiras,

Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias

Do despontar da existência!

- Respira a alma inocência

Como perfumes a flor;

O mar - é lago sereno,

O céu - um manto azulado,

O mundo - um sonho dourado,

A vida - um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,

Que noites de melodia

Naquela doce alegria,

Naquele ingênuo folgar!

O céu bordado d'estrelas,

A terra de aromas cheia

As ondas beijando a areia

E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!

Oh! meu céu de primavera!

Que doce a vida não era

Nessa risonha manhã!

Em vez das mágoas de agora,

Eu tinha nessas delícias

De minha mãe as carícias

E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,

Eu ia bem satisfeito,

Da camisa aberta o peito,

- Pés descalços, braços nus -

Correndo pelas campinas

A roda das cachoeiras,

Atrás das asas ligeiras

Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos

Ia colher as pitangas,

Trepava a tirar as mangas,

Brincava à beira do mar;

Rezava às Ave-Marias,

Achava o céu sempre lindo.

Adormecia sorrindo

E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

- Que amor, que sonhos, que flores,

Naquelas tardes fagueiras

A sombra das bananeiras

Debaixo dos laranjais!

Voltarei, pois, aos anos cinquenta do século passado e ao Grama daquela época. Reviverei, primeiramente, a paisagem física, depois a paisagem social, com os retratos de memória, os tipos inesquecíveis, a economia, a política (a emancipação, as primeiras eleições municipais), o ensino (no saudoso Grupo Escolar), o esporte (com algo do Gramense e dos campeonatos que a cidade viveu), a religião (Pe. Antônio Pinto, Pe. Russo, etc.) . . .

Para os jovens de hoje, que tentem imaginar como era sua terra há mais de cinquenta anos; para aqueles que lá então viviam, que voltem ao passado, e, lendo-me, despertem suas lembranças, deixem-nas esvoaçar e curtam comigo a memória de tempos idos.

Paisagem física

O Grama dos anos cinquenta não tinha ruas calçadas. Na época da seca, era poeira só, que o vento levantava em redemoinhos.

Na estação das chuvas, principalmente das chuvas intermitentes, o barro era presença constante. Ao andar nas ruas, as pessoas diziam estar "amassando o barro"; para quem andava descalço – e eram muitos nessa condição -, a coisa era mais fácil; para quem usava sapatos, ou os desgastava rapidamente ou tinha de usar galochas. Estas eram tão presentes que, embora não se saiba quem, alguém cunhou a expressão "chato de galocha".

E, entre final de outubro e início de abril, chovia de todo modo. Chovia fininho, dias seguidos, com frio ou sem ele; chovia a cântaros, nas tempestades que vinham de supetão, ou nas chamadas trombas d'água; chovia de lado, obliquamente, e os guarda-chuvas em nada nos protegiam; chovia nos morros, nos pastos, no cemitério, no Pastinho, nas cabeceiras do ribeirão, avolumando suas águas. . .

Havia enchentes telúricas, amedrontadoras, que alagavam grande parte da cidade, desde a ponte da Rua de Cima, próxima de onde hoje fica a Prefeitura, até a ponte da Rua Nova, onde então ficava a velha Prefeitura. Próximo à ponte da Rua Nova chegaram a fazer um túnel, de modo a escoar a água mais rapidamente, coisa que de nada adiantou, pois ela subia e invadia a rua, a casa de Jujuca, de Oscar, o bar da sinuca. . .

Com a chuva, a vegetação, ressequida durante a seca do inverno, rejuvenescia e o festival de verde adornava morros e campinas, o gado engordava, os pássaros cantavam álacres.

Quando chovia, as estradas, todas de terra, ficavam intransitáveis para veículos automotores. A ida a Rio Casca era um drama, pois na região de Casagrande, o lamaçal era tanto que os veículos, geralmente caminhões, dificilmente passavam, mesmo com correntes nas rodas.

Só quem andava a pé ou a cavalo transitava livremente. Às vezes, a cidade recém-emancipada ficava ilhada, sem correio, sem estoques para as vendas, sem medicamentos na única farmácia existente: a do Orfeu.

No início do ano, costumava haver trégua nas chuvas. Dizia-se que tivera início o veranico de janeiro. Meu tio Leovelgido Nicolau de Lima, o célebre Lô, que gostava de tiradas retóricas, chegava ao início do "beco" (rua que vai dar no ribeirão), via as águas calmas após os alagamentos de dezembro, sentia o astro-rei brilhar, e vaticinava: "Teremos trezentos e sessenta dias de sol . . .".

No entanto, temos de falar, também, do período da seca, que começava em abril e ia até final de outubro. Às vezes, tal período se prolongava, e as pessoas começavam a clamar pela vinda das chuvas. Afinal, o gado ficava magro, por não ter quase o que comer, a vegetação se tingia de um amarelo triste, e os agricultores esperavam pelo tempo úmido para poder plantar. Também o pó, nas ruas e estradas, atanazava o povo; nas estradas, era tanto que os que iam de ônibus a Ponte Nova, em viagem que durava três horas, usavam jaleco branco, chamado de "guarda-pó". Tal proteção, porém, era para quem podia dela desfrutar; os demais deixavam o pó assentar sobre eles, e simplesmente o sacudiam, quando da chegada.

Quando a chuva demorava muito a vir, grupo de mulheres da Rua de Baixo subia até o cruzeiro que fica defronte a Igreja de Santa Efigênia, e jogavam água nas pedras existente ao seu pé, rogando chuva por amor de Deus. Mais tarde, quando li Euclides da Cunha, vi que também nos sertões da Bahia, no tempo da guerra de Canudos, procedimento idêntico se fazia, para aplacar os terrores da seca e da canícula.

Quando as primeiras chuvas chegavam, era só alegria. Alguns, mais sábios e experientes, até as previam pela dor dos calos, pela cor do horizonte, no final do dia, ou, então, pela folhinha de Mariana, que previa o tempo para o ano todo, Hoje, mesmo com os satélites, os serviços de meteorologia não vão além de uma semana a dez dias; a folhinha de Mariana, não, cobria o ano todo – o que não deixava de ser humorístico. Certa feita, ouvi o Biguá dizendo: - "Poxa, esta chuva não está na folhinha de Mariana", como se a água que caía tivesse transgredido as previsões do famoso calendário (ainda existe ?).

Depois das primeiras chuvas, plantava-se milho e arroz, este em terras alagadas, preferivelmente nos brejos. Tanto o arroz como o milho de terras baixas (dos quintais da Rua de Cima, por exemplo) sofria com as enchentes, mas, lá por fins de janeiro e durante fevereiro, estavam prontos para a colheita.

No inverno, plantava-se cebola, e o Grama era conhecido como um dos grandes produtores de cebola no país. Principalmente na rua de Cima, a cebola era regada com o que era retirado do ribeirão pelas rodas d'água, marca registrada da indústria de carpintaria gramense, que giravam diuturnamente, empurradas pelas águas então minguantes (por causa da seca) do ribeirão. E o atrito do eixo das rodas com os troncos que as sustentavam emitia som plangente e poético, quebrando a monotonia das enluaradas noites gramenses.

 

Próximo capítulo: O Grama e a cebola

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